Tema desta edição - SETEMBRO DE 2025:
Memórias e histórias
https://pesquisafacomufjf.wordpress.com/2020/03/03/entre-memoria-e-historia-a-problematica-dos-lugares-por-marcio-henriques/
Quando falamos sobre memória e história, parece que estamos tratando da mesma coisa: lembrar do passado. Mas, segundo o historiador francês François Hartog, esses dois conceitos têm funções bem diferentes. A memória é algo vivido e compartilhado por todos, enquanto a história é uma prática mais técnica, feita por especialistas. Entender essa diferença ajuda a perceber como lidamos com o tempo e com o que escolhemos lembrar.
A memória, para Hartog, é uma prática social. Ou seja, todos nós participamos dela, mesmo sem perceber. Ela está presente no cotidiano, nas conversas, nas homenagens, nas redes sociais. É como se o passado estivesse sempre vivo no presente, sendo reconstruído o tempo todo. Lembrar não é repetir, é reinterpretar — e isso se torna quase um dever pessoal: não esquecer é uma forma de respeitar e manter viva a experiência coletiva.
Já a história funciona de outro jeito. Ela é uma prática científica, feita por historiadores que seguem métodos e regras para estudar o passado. Diferente da memória, que é emocional e imediata, a história busca organizar os vestígios do que aconteceu com mais racionalidade. O objetivo é entender os processos, fazer perguntas novas e construir uma narrativa que conecte passado, presente e futuro.
Enquanto a memória está ligada ao presente, aqui, já, agora, a história tenta escapar da força do presente. Ela investiga, questiona e até desmonta versões já estabelecidas. É como se a história fosse uma ponte entre tempos diferentes, permitindo que a gente compreenda melhor o que nos trouxe até aqui.
Fique de olho: memória e história são duas formas de lidar com o passado, cada uma com seu papel. A memória é pessoal, viva e emocional. A história é crítica, organizada e reflexiva. Hartog nos mostra que, para entender o mundo, precisamos das duas: da memória para sentir e da história para pensar.
As memórias podem inspirar a reflexão sobre a Histórica ao indicar quais as perguntas que a sociedade faz a si mesma sobre seu passado. Dessa forma, a memória é um poderoso instrumento que os grupos sociais utilizam para serem reconhecidos.
Por isso, estudar as memórias e as histórias é uma necessidade de toda sociedade que quer progredir. Assim, as instituições de cultura e de educação devem fomentar suas pesquisas. Entendendo isso, a sociedade poderá escolher o que lembrar e como lembrar. Os livros didáticos, os filmes, os monumentos, os jornais, as mídias digitais, as redes sociais e até os feriados são impactados pelo uso da memória e da história, cada qual influenciando de um jeito particular. Em geral, nossas referências estão baseadas nas memórias e fazemos perguntas baseadas na História.
Também é indispensável entender que existe uma memória coletiva, que nem sempre é unificada. Grupos diferentes podem lembrar do mesmo evento de formas diferentes, até mesmo como visões opostas. A história, por isso, atua como mediadora, buscando evidências e múltiplas perspectivas para construir narrativas.
Se de um lado a história responde com método, crítica e profundidade, de outro lado a memória é a chama da existência vivida e que teima em se fazer presente. Quando memória e história trabalham juntas, ajudam a sociedade a entender não só o que aconteceu, mas por que isso ainda importa.
Memoriar
Bárbara Seabra
Cirurgiã-dentista.
Autora do livro “O diário de uma gordinha”. Escritora.
Instagram: @livroacontagota
Amo essa ideia de substantivos se tornando verbos e, como num passe de mágica,se movimentando entre pensamentos e palavras. Memória é algo tão precioso! E tão particular também.
No último dia dos pais nos reunimos para um café da tarde. Entre pães, salgados, bolos e xícaras de café, chega à mesa um álbum de família. Eu, a primogênita, com 50 anos, vejo minhas fotos de fralda e chupeta passando de uma mão a outra, trazendo comentários como “que fofa” ou “ela amava esse brinquedo”.
Meus irmãos, mais novos que eu 7 e 15 anos, estavam vestidos com uniforme do Fluminense ou sentados lendo revistas. Fotos sem produção profissional. Daquelas feitas com filme Kodak 36 poses e que torcíamos para que ficassem boas, pois não havia como repetir o momento. Tão diferente de hoje, que sacamos o celular do bolso e já temos oportunidade de fotografar ou filmar inúmeras vezes até ficar como queremos.
Como queremos?
Será que estamos manipulando nossas memórias? As fotos dos celulares passam por filtros e mais filtros, caras e bocas, editoriais ensinando como empinar a bunda ou deixar o rosto com menos rugas.
Lembram as fotos dos aniversários infantis dos anos 1980? As crianças suadas, cabelos grudados na testa, um sujinho aqui e outro ali do cachorro-quente ou da cobertura do bolo. Um bolo retangular coberto de confeitos e cobertura de brigadeiro ou chantilly. Eu ainda prefiro os de brigadeiro!
E hoje? Roupas combinando mamãe-bebê, ou papai-filhão, que refletem o tema da festa e apresentam crianças limpas, penteadas e algumas vezes maquiadas. E temos, não podemos esquecer, os bolos falsos, de três ou quatro andares, cada um mais imponente que o outro, mas de isopor! De I-S-O-P-O-R! Como assim? Um bolo que não posso comer? Só para estar bem na foto? Não! Não gosto disso!
Assim são também nossas memórias: elas passam por maquiagem. Algumas talvez sejam de isopor (falseadas, só a cobertura de verdade e por dentro sem nenhum sinal de afeto). Algumas, cobrimos com pasta americana para não ver suas rachaduras, suas falhas. Entretanto, são essas as estruturas que nos construíram. Com acertos e defeitos, falhas e dificuldades, foram as histórias por trás das memórias que nos tornaram capazes de estarmos aqui.
Pois, por trás de cada memória, há uma história que pode ser contada (ou não!), porém faz parte de nós…
A memória da história da abolição em Mossoró
Kleber Sousa
Administrador, bacharel em Direito e Doutor em História
Autor dos livros: "Caminhos do Sucesso: a realização aonseu alcance" e "Liderança empreendedora: um novo livro para um novo mundo".
Instagram: @klebernatal
Estamos em setembro, mês que marca a transição de estações no Nordeste brasileiro: fim do inverno e início da primavera, no dia 21. Desse modo, é bom recordar que, em 30 de setembro de 1883, um ato declaratório da cidade de Mossoró impactou profundamente a mudança nessas terras potiguares.
Esse fato histórico, que até os dias atuais é retratado na história social e cultural do município, representa uma importante contribuição daqueles homens do século XIX, que foram agentes de mudança naquele período e que, até hoje, ainda impactam a nossa sociedade com essa história que vive na memória popular.
Ao pensar em como a história impacta a memória popular e a identidade de uma sociedade, é importante evidenciar o papel dos cronistas e historiadores, que são agentes de construção da memória coletiva.
O historiador, ao contribuir com a construção da história do que aconteceu no passado, deve atuar de forma mais ampla e imparcial, questionando e reinterpretando os fatos registrados e os documentos. Já o cronista, que usará sua memória para escrever sobre o que ocorreu, sofre influências diretas da experiência vivida e, de certo modo, também não possui a competência técnica necessária para conseguir se afastar dos fatos e das influências.
Nesse sentido, quero evidenciar a importância dos historiadores que contribuíram com a história da abolição na cidade de Mossoró, registrando, discutindo e demonstrando como ocorreu aquele processo de libertação de escravos nessa cidade brasileira. Fato esse que levou Mossoró, no Oeste potiguar, a ser conhecida como a "terra da liberdade", com uma celebração política anual na sede da Loja Maçônica 24 de Junho, em homenagem a esse marco histórico.
Outrossim, até os dias atuais, o povo mossoroense e da região Oeste do Rio Grande do Norte celebra esse feito histórico, em que a Sociedade Libertadora Mossoroense, com o apoio da Loja Maçônica 24 de Junho, promoveu um conjunto de ações que levaram a terra de Santa Luzia — também conhecida como a capital do Oeste potiguar — a ser reconhecida como uma das primeiras cidades brasileiras a promover a libertação oficial de escravos, por meio de um ato declaratório municipal.
Guardo memórias para contar histórias
Elikah França
Matemática, Mestre em Banco de Dados, bacharel em Direito, Especialista em Perícia em Crimes Digitais, Especialista em Ciências Criminais.
Instagram: @elikah
É só sentar em uma cadeira, olhar o mar e o horizonte, ver o sol se pôr preguiçosamente, pintando o céu de laranja, e nossos pensamentos viajam no tempo.
Quantas vezes vi esta cena? Quantas vezes parei e, simplesmente, admirei?
Era como se precisasse focar para não perder nada daquele momento.
Era a hora da luz de ouro, a melhor hora para fotografar. É a hora que os fotógrafos amam! É quando os raios solares tornam as cores mais vivas; tudo fica mais lindo.
Pronto: amei a luz, o lugar, o efeito das luzes; respirei fundo, fechei os olhos para conferir se registrei tudo. Construí uma memória.
A memória vem de um sentimento, de uma reação automática, de um pensamento. A memória traduz um sentimento e pode trazer boas lembranças ou coisas de que não queríamos nos lembrar.
A emoção comanda a memória.
Já a história é uma montagem de eventos que são unidos para um objetivo. Contamos histórias para levar ao outro um sentimento, um retrato.
A história é uma construção e depende de quem a constrói. Ela é criada para satisfazer objetivos. Por isso, uma mesma história pode ser contada com diferentes versões.
A memória é pessoal; cada um tem a sua, ainda que todos estivessem no mesmo lugar, vendo a mesma coisa.
Só se deixa na memória o que queremos.
Já a história, nem controle temos sobre ela. E, quanto mais é contada, mais vai sendo alterada, reconstruída, adaptada.
A gente guarda na memória pedaços de nós mesmos, e é a partir deles que contamos a nossa história… como queremos, como nos convém.
Acauã
Solitário e errante, o acauã,
Agoureiro entre as aves de rapina
Canta e pousa na calma vespertina
Bate as asas cantando de manhã
Diferente demais da arribaçã
Que à vida em bando se destina,
Vaga só pelos céus e sua sina
É viver retirado pela chã
Eu, também, muitas vezes sou errante.
Diferente, porém, da avoante
Sigo só se não acho o que procuro
Sem temer nem deixar nem ser deixado
Todo bem que se perde em meu passado
Sempre encontro outra vez no meu futuro
(de Weldemberg de Castro - em Natal-RN, manhã de 12 de março de 2025)
Uma bicicleta transformer
José Santhiago
Advogado, Historiador e Pós em Jornalismo Digital. Autor do livro "Caminhada contra o câncer". Assistente em Comunicação Integrada. Instagram: @santhiago
A luz do poste iluminava, com um feixe piramidal, um canto da rua quando as duas rodas se aproximaram lentamente do portão amarelo enferrujado. Partindo das rodas para o alto, podia-se ver agora, em modo lento, as engrenagens do pedal de alumínio cromado, a coluna do assento e, em cima, o banco, feito em couro “do bom”, guidão prateado sustentando um farol igualmente reluzente, partes das alavancas dos freios e, indo em direção à parte traseira, um pouco do suporte além do banco. Pronto! Já se podia ver toda a bicicleta em seu esplendor azul-marinho com detalhes em prata, cromo e couro marrom.
O portão enferrujado rangeu ao abrir e permitiu a entrada da bicicleta. A parte da frente da casa pobre, onde morava uma família simples, de poucos recursos e muita vontade de vencer na vida, era um pequeno espaço cimentado. Muitas das casas do bairro eram parecidas, sendo que a maioria delas tinha esse espaço na frente. (Futuro projeto de garagem de um carro que nunca foi comprado?)
Fazendo pouco barulho para não acordar os habitantes, a bicicleta foi em direção à parte de trás da casa. O farol acendeu em “modo lanterna” apenas para iluminar o trajeto sem despertar olhares curiosos de quem, porventura, passasse na rua.
A área do tanque de lavar roupas, iluminada por uma lâmpada de 9 watts já velha e fosca, como quem guarda segredos, também tinha sido cimentada para facilitar os trabalhos de limpeza da casa. Sobre o cimento, foram colocados pedaços de azulejos coletados de restos de uma obra próxima. Os cacos formavam imagens abstratas e multicoloridas, parecendo um caleidoscópio.
Um silvo agudo, mais fino que um assobio, saiu das entranhas da bicicleta. As sombras do feixe de luz tênue projetadas no muro da área de serviço testemunharam a transformação: as rodas, engrenagens e pedais se curvaram em novas engrenagens, multiplicadas em cadência. O quadro central, parte da coluna e a parte traseira metálica da bicicleta se transformaram em alavancas, eixos, pinos e parafusos. O banco de couro se tornou correia de transmissão, que se pôs entre engrenagens e roldanas. O farol, em seguida, virou um display de controle. Os cabos do freio se tornaram fios e pequenos engates elétricos. O restante do metal abriu-se em superfícies e foi esticado quase à lâmina para virar a parte externa do novo equipamento. A transmutação, pode-se dizer quase genética, tornou-se completa.
A bicicleta se transformou em uma máquina de lavar roupas.
Surgiu da luz franca a máquina de lavar roupas branquíssima, tão sonhada pela mãe das crianças que tinham pena do trabalho dela. A mãe agora teria descanso!
Quando acordou, sem dar palavra a quem quer que fosse, um dos meninos correu para a área de serviço. Não encontrou nada. O tanque de lavar, cimento bruto, ainda estava lá com seu estilo cansado. Tinha sido apenas um sonho que ficou guardado nas memórias de um garoto pobre do subúrbio do Rio de Janeiro, pelo final da década de 1960.